Quatro Paredes Tombadas
Um Documentário de João Oliveira


A estrada vem do centro da aldeia: do café, dos correios, do outro café mais abaixo, da igreja e do cemitério. Vem da direita, de baixo, e começa a desenhar um esse invertido entre o escadório de campos verdes, casas, currais e estufas que compõem o resto da paisagem desta casa. A primeira curva à direita é também uma pequena ponte sobre um ribeiro, com uma discreta proteção metálica. Esta varanda alta, com grades de ferro forjado em verde-escuro, desenhadas em linhas paralelas com motivos subtis, convida à contemplação. À noite, a iluminação pública revela a estrada como um caminho azul-acizentado, iluminado por círculos de luz equidistantes. Ao longe, os contornos das serras e os pontos luminosos das aldeias distantes parecem reflexos do céu estrelado. Em dias limpos, à direita, em direção ao centro da aldeia, mas mais alto e mais afastado, como uma miragem, vislumbra-se Aveiro.
Na história recente da minha família, esta paisagem é o ponto de fuga impossível, de onde tudo parte e para onde tudo converge, como nos quadros inquietantes de Escher. É a paisagem dos meus antepassados: a da antiga casa dos meus avós paternos na aldeia de Rocas do Vouga, hoje herdada pelos meus pais — a casa rural construída pelos meus avós em meados dos anos 60 do século passado e transformada em casa de férias pelos meus pais nas obras de renovação dos anos 90. Os meus avós, que viveram em Rocas do Vouga toda a vida, estão hoje sepultados no cemitério da aldeia, em frente à igreja, com vista para a serra. Eu, por outro lado, sou um estranho perpétuo nesta terra onde vivi o primeiro ano da minha vida, e à qual tenho regressado desde então em visitas regulares, mas fugazes.
Durante esses 365 dias entre novembro de 1977 e novembro de 1978, os meus pais devem ter passado horas suficientes sentados nessa varanda para que a paisagem se enraizasse no meu subconsciente. Imagino-os a seguir com o olhar distraído o movimento dos carros e das pessoas, a escutar os sons dos campos vizinhos e dos animais que os meus avós criavam em redor da casa (vacas, galinhas, porcos). Imagino-os também a pensar nas suas vidas: no que deixaram para trás em Moçambique e no grande desconhecido que era o seu futuro. Entre 14 de julho de 1977 e 26 de novembro de 1978, viveram meses em suspenso naquela casa, e uma grande parte daquilo que sou resulta da travessia que os levou de Lourenço Marques–Maputo até Rocas do Vouga e desses 17 meses: o final de uma gravidez difícil, a convivência complicada entre avós, pais e neto na casa de Rocas nos meses que se seguiram ao meu nascimento, e o lento processo de cicatrização das feridas causadas pela saída de Moçambique colonial e a chegada a esta pequena aldeia.
Depois, vivemos uma vida muito diferente nos subúrbios de Lisboa com os meus avós maternos, que regressaram da Rodésia, hoje Zimbabué, poucos meses após se mudarem para o Forte da Casa. Com o tempo, as histórias de Moçambique e da Rodésia ganharam proporções míticas. Hoje, penso nessas histórias e na África colonial muito particular dos meus pais e avós como num quadro de Rousseau — inocente e cheio de cores vivas, mas não especialmente fiel à realidade. Desde que me lembro, tenho procurado compreender que tipo de legado recebi por ter vivido todos aqueles anos no sul de África sob regimes coloniais. O que é que eles levaram consigo e o que é que trouxeram de volta dessas experiências coloniais? E de que formas isso se manifesta para além das histórias coloridas e ingénuas que ouvi vezes sem conta ao longo dos anos?
Rocas do Vouga é o lugar onde tudo começa e tudo termina. Foi de lá que o meu pai saiu com dezassete anos, em 1965, e para onde regressou doze anos depois, recém-casado e prestes a ser pai. A minha mãe nasceu em Moçambique, mas os seus pais saíram de lugares semelhantes a Rocas do Vouga. E, depois dos primeiros anos na capital moçambicana, da infância e adolescência na capital rodesiana, e do início da vida adulta novamente em Lourenço Marques, grávida de cinco meses e casada há três anos, é esta aldeia que a acolhe após 26 anos a viver numa África branca e colonial, mas também profundamente urbana. E é nesta paisagem que o tempo parece ficar suspenso por um longo instante.
Em Rocas do Vouga, mergulho nesse instante como um detetive em busca deste legado colonial complexo. As memórias dos meus pais sobre esses meses em suspenso aparecem lado a lado com imagens da vida quotidiana nesta aldeia hoje. O mistério é este património colonial ilusório que eu, como tantos outros portugueses, herdei. Rocas do Vouga procura este legado ao regressar ao lugar onde tudo começa e termina, ao escutar as histórias do regresso conturbado dos meus pais do mundo colonial, mas também outras histórias, contrastantes, dos habitantes da aldeia; ao inscrever essas mesmas histórias nesta paisagem; ao procurar ainda os hábitos ancestrais que o meu pai e os meus avós levaram consigo para África; e ao tentar compreender o impacto da experiência colonial nestes antigos colonos e na vida quotidiana desta aldeia, já em 2023.
João Paulo Oliveira